Rádio Café – Café à meia-noite
Por Mônica França - 31 de Agosto de 2020
Nossa cafeteria está mais agitada que o normal. Será devido aos contos assustadores que só podem ser sintonizados na Rádio Café? Bem-vindo mais uma vez. Espero que aproveite sua bebida e mais um conto estranho.
-Olá. Tudo bem?
-Sim, hoje estamos com mais clientes que o habitual. Vai ser o de sempre?
-Seu expresso com pão de queijo está servido. Já vou ligar o rádio.
Iniciamos mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever. No quadro Conte seu conto de hoje teremos mais uma participação de Mei Lin Mei com o conto Café à meia-noite pelo selo Horror.
Há duas semanas iniciara seu trabalho como enfermeira de UTI em um hospital de uma cidadezinha do interior. Entrava às 18:00, saía às 06:00 e folgava aos domingos. O salário não era ruim, dava para pagar as despesas com aluguel, contas e alimentação e sobrava um pouco para juntar e investir na tão sonhada pós-graduação. Quando ela decidiu deixar a casa dos avós para trabalhar no interior, eles foram contra. Contudo, o desejo de ser independente foi mais forte e rompeu os grilhões da obediência e do medo de algo sair errado. Assim, sentia-se satisfeita e orgulhosa em sua segunda semana de trabalho.
Naquela noite, no entanto, estaria sozinha, pois a outra enfermeira ficara doente e não pudera trabalhar. De qualquer forma, a UTI estava com apenas um paciente e ela já cuidava dele há alguns dias. Seguindo o protocolo de cuidados intensivos, ela cumpriu a ronda do andar do horário das dez horas e estava na sala de descanso. Colocara o celular para tocar o alarme antes da meia-noite, pois iria preparar um café, observar o paciente e fazer outra ronda pelo andar. Ela poderia assistir televisão ou ler algum livro, mas preferia cumprir seus deveres, afinal gostava muito de seu trabalho.
Antes do alarme avisar que estava na hora, ela já se encontrava na copa contemplando a fumaça do café quente se esvair no ar. Observava pela janela a lua cheia reinando no escuro céu noturno. A luminosidade dela embotava um pouco seu olhar incauto de alguém acostumado ao cinzento céu das metrópoles superpopulosas. Faltava uns dez minutos para a meia-noite. Seus olhos divagavam entre a lua e a fumaça do café e com a xícara em mãos se perdia entre a escuridão do líquido quente e a claridade do satélite frio e distante. Sua respiração era profunda e lenta e seus pensamentos esmaeciam em sua mente como a fumaça do café esvaia-se no ar.
Levou a xícara ao lábio e bebeu o primeiro gole da bebida. O sabor amargo fez as papilas gustativas despertarem e sem perceber tomou mais um gole e depois outro e mais outro até terminar todo o café. Surpreendeu-se ao fitar a xícara vazia e notar que na borra havia uma mancha preta que lembrava uma silhueta humana. Fixou o olhar na mancha mais uma vez e agora parecia uma silhueta branca. Preto e branco, mancha, borra, formas, silhuetas, lua… sacudiu a cabeça e olhou o relógio. Meia-noite! Foi para o leito do paciente e checou tudo de acordo com o protocolo. Disse algumas palavras de incentivo a ele e foi para o corredor fazer a ronda. O andar vazio e silencioso era assustador e, de alguma forma, despertava uma certa curiosidade quase mórbida. Pensou se poderia haver espíritos de pacientes falecidos vagando como almas penadas pelo andar. “Que tipo de pensamento é esse?”.
Surpreendeu-se ao notar o quão próxima a lua estava da janela na sala de descanso. Podia jurar ser capaz de enxergar suas crateras, mas sabia que aquilo era impossível. Naquele momento era incapaz de tirar os olhos do satélite e assim permaneceu por um tempo inenarrável absorvendo a lua e sendo absorvida por ela. Absorta em seus pensamentos, só voltou a realidade ao ouvir um barulho de algo cair no andar de cima. O barulho repentino e agudo lembrava o estilhaçar de vidro. Ela se esforçou para lembrar o que havia acima da UTI. Pensou por alguns minutos até se dar conta que aquele andar estava desativado. Era quase uma e meia da manhã e a madrugada começara a ficar nublada. Uma névoa impedia a visão externa da janela cuja lua desaparecera deixando tudo mais escuro e sombrio. A jovem enfermeira teve um pico de adrenalina ao escutar o que parecia ser um rangido de correntes. Respirou fundo algumas vezes e não se conteve ao recordar seus pensamentos sobre almas penadas e assombrações.
Tentou em vão pensar em outros temas, mas o silêncio sepulcral da UTI, quebrado apenas pelos sons robóticos das máquinas de sobrevivência, era mais agudo e visceral do que a iminência da morte. Um gemido choroso ecoou pelo corredor e a fez correr até o paciente. As máquinas de suporte não funcionavam. Ela tocou a campainha de emergência e iniciou o suporte mecânico de respiração, mas infelizmente o moribundo não resistiu e o médico o declarou morto às 02:20 da manhã. Os procedimentos quanto ao corpo foram realizados e ela ficou sozinha no andar. A madrugada parecia mais fria, talvez porque aquele fora o seu primeiro cadáver. A névoa havia se dissipado e a lua distante já não iluminava a escuridão como antes. A jovem sonolenta não queria dormir e decidiu tomar mais um pouco de café. Mal engolira o primeiro gole amargo e outro gemido ecoou pelo corredor, mas esse parecia vir pelo duto de ar. “Devo estar alucinando devido ao estresse.”. Olhou para o relógio e viu que eram três e meia, ainda faltava duas horas e meia para o turno acabar. Soltou um suspiro e tomou mais um pouco de café.
Apesar do café ressonava calmamente na sala de descanso quando outro gemido a acordou em um sobressalto. O coração agitado no peito e a respiração curta indicavam a alta circulação de adrenalina no corpo. Não sabia se fugia para a enfermaria ou se encarava a densa escuridão solitária de seu andar. Acreditava que os filmes de terror da infância e da adolescência a estavam influenciando. Contudo, uma sinfonia de gemidos, vidros quebrados e correntes arrastadas a confundiam. Em meio a toda balbúrdia, a jovem distinguiu uma suave melodia. Uma canção exaltando a beleza gélida e distante da lua a qual lembrava uma cantiga de roda. Parecia a cantiga aprendida com sua amiga de infância. Sacudiu a cabeça, pois estava confusa. Como pudera lembrar de Sofia após tantos anos? A melodia continuava a se destacar e a jovem ficou inebriada com a canção e suas lembranças. Seus pés caminharam em direção as escadas, sua mente só pensava em Sofia. Chegou ao topo das escadas e assim que seus olhos fitaram o corredor a sua frente reconheceu uma silhueta humana feminina e etérea.
Instintivamente chamou por Sofia e a silhueta a sua frente se moveu alguns metros. Sem refletir claramente, foi em direção ao espectro embalada pela curiosidade, a melodia e suas lembranças. Estendeu sua mão na tentativa de alcançá-lo, contudo o ser dissipou-se como névoa antes mesmo de ser tocado por ela. Uma angústia opressora comprimia seu coração, o seu corpo tremia, sua mente estava embotada e, ainda assim, não conseguia sair correndo daquele lugar. Notou uma luz fraca coada pela janela iluminando uma mesa com alguns livros em cima. A enfermeira piscou algumas vezes antes de perceber a criatura etérea sentada a escrever. Movida por uma força inexplicável, foi até a mesa e antes que pudesse alcançá-la, a criatura esvaiu-se novamente. Contudo, havia na mesa algo parecido com um diário. Em frenesi, apossou-se do diário e deu por si na sala de descanso sendo despertada por sua colega de trabalho. Elas trocaram algumas palavras sobre o falecido e a jovem se apressou para chegar em casa. Colocou a chave na porta do apartamento e assim que entrou procurou pelo seu tesouro em sua bolsa. Não encontrou nada. Deduziu ter sonhado aquilo, inclusive com sua amiga e foi tomar um banho. Preparava-se para dormir, quando notou em sua escrivaninha a presença decadente de um diário solitário. Sentindo-se atraída por ele, começou a folheá-lo sendo consumida por suas palavras como em um sonho enigmático iluminado pelo luar.
E este foi mais um Conte seu conto em seu programa favorito Eu não tinha o que fazer e fui escrever com a participação de nossa ouvinte Mei Lin Mei. Agradecemos a todos nossos ouvintes e até o nosso próximo encontro.