Rádio Café – Chá noturno
Por Mônica França - 3 de Setembro de 2020
A Rádio Café te recebe mais uma vez com deliciosas bebidas e contos subversivos.
Deixai aqui toda esperança, vós que entrais (Dante Alighieri)
-Olá. Tudo bem?
-Claro, irei preparar seu pedido.
-Bom apetite!
Voltamos com mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever com o quadro Conte seu conto. Lembrando nossos selos temáticos Madness, Memories, Erotics e Horror. Hoje teremos novamente a participação da nossa ouvinte Mei Lin Mei com o seu texto Chá noturno no Conte seu conto pelo selo Horror.
Preparava-se para dormir, quando notou em sua escrivaninha a presença decadente de um diário solitário. Sentindo-se atraída por ele, começou a folheá-lo sendo consumida por suas palavras como em um sonho enigmático iluminado pelo luar. Em um fluxo de leitura desarticulado com a realidade, a jovem enfermeira vivenciou as experiências aterradoras feitas no andar desativado do hospital. Dragada pelas páginas com descrições vívidas de eviscerações, lobotomias, partos proibidos, eletrochoques convulsivos, sangrias e rituais de magia, foi vomitada para o real ao deparar-se com a descrição de uma paciente parecida com Sofia. A enfermeira suava frio e tinha as pupilas dilatadas, o horror daquela leitura a deixara atônita e, ainda assim, movida por sua curiosidade insaciável, chegara a um dilema. Seria a paciente do diário a sua amiga de infância? Seria Sofia, aquela cujos ternos abraços a consolavam da solidão que sentia após o divórcio de seus pais? Suspirou, estava totalmente desperta e não conseguiria mais dormir antes de trabalhar. Passava um pouco das quinze horas…
Sentada à mesa, com um sanduíche e uma xícara de chá, foi acometida de mais lembranças calorosas de Sofia. Sua amiga sumira antes de entrar para o ensino médio. Não se despedira e jamais entrara em contato. Mordeu o sanduíche de queijo quente, mastigando-o devagar enquanto respirava um pouco mais profundamente que o normal. Tomou um gole do chá verde e sentiu os olhos marejarem. Aquelas lembranças traziam à tona muitas dores e a pior delas era o sumiço de Sofia. Um choro compulsivo liberou os afetos represados e ela ficou calma. Ao se recompor, decidiu não pensar mais naquilo e foi tomar outro banho antes de ir trabalhar. Ia a pé ao hospital, uma vez que morava a alguns quarteirões de distância. Saíra um pouco mais cedo, pois não queria ficar sozinha em casa. O farfalhar das árvores cantava ao ritmo de seus passos em uma melodia compassada e agradável. O som melódico a fez esquecer suas preocupações.
Não havia nenhum paciente na UTI e por essa razão sua companheira de turno, cujo namorado chegara para uma visita inesperada, pedira para que ela a cobrisse depois da meia-noite. Ela não conseguiu se desvencilhar do pedido inesperado e agora estava sozinha no andar. Sentindo uma crise de ansiedade se aproximar, foi para a copa preparar um chá de camomila. A noite nebulosa e sombria não contribuía para acalmar a jovem cujo espírito curioso se escondia sob o medo da escuridão. Jogou-se na cadeira e automaticamente começou a tomar o chá. Preparou mais chá, tomou e depois preparou outro e tomou ainda mais. Um montículo de sachês de camomila empilhou-se na pia e a enfermeira ainda se sentia desconfortável. Foi para a sala de descanso pensando em dormir um pouco. Esparramou-se no sofá e sentiu seus olhos fechando lentamente. Seu corpo foi relaxando até finalmente adormecer. Subitamente levantou do sofá e passou a caminhar pelo corredor. Não havia nada a fazer, mas ela continuava a caminhar com se estivesse em um transe. Parou em frente às escadas que levavam ao andar superior e despertou sem entender o que acontecera.
Perplexa, observou a escada a sua frente até se virar e sair correndo para a sala de descanso. Deduziu ter tido um episódio de sonambulismo como tivera algumas vezes no passado. Sim, isso mesmo. Não era a primeira vez que tinha uma crise de sonambulismo, lembrou-se. Após a separação de seus pais, ela costumava ter esses episódios umas duas vezes por semana. Suspirou, caso não melhorasse iria consultar o psiquiatra. Sacudiu a cabeça tentando afastar os maus pensamentos e foi para a copa. Olhou para a pia e notou a quantidade de chá que bebera. Eu deveria estar dormindo como um bebê agora! Por ora, beberia um pouco de água e iria ao banheiro. Sentada no vaso sanitário, imaginou ter ouvido um barulho de passos. Bom, alguém poderia ter errado o andar ou mesmo sua companheira de turno ter voltado. Antes de dar a descarga, a porta de um dos privativos foi batida. O coração da jovem disparou e sem tempo para se recompor, outra porta bateu violentamente. As histórias lidas do diário invadiram sua mente. Ela não conseguia emitir um único som, nem mesmo um grito. A batida de outra porta foi acompanhada por um grunhido. As lâmpadas começaram a piscar e as torneiras vazavam água aos borbotões. Paralisada de medo, a jovem foi capaz de apenas se encolher em cima do vaso e apertar seus olhos torcendo para tudo terminar bem.
Ouviu as descargas dispararem ao mesmo tempo e, ainda assim, não conseguia se mover. As tampas dos vasos bateram uníssono ecoando um som aterrador pelo corredor do andar vazio. A única coisa que ela conseguia fazer era rezar baixinho e chorar um filete quase imperceptível de uma lágrima teimosa. A jovem temia fazer qualquer ruído, ainda assim, juntando uma coragem fingida, abriu os olhos. O banheiro estava possuído por uma névoa densa e escura como a fumaça tóxica de um incêndio. Ao puxar o ar para seus pulmões, sentiu-se sufocar. Seu corpo começou a se debater e ela caiu no chão. Soltava ruídos estranhos em busca de oxigênio. Sua consciência embotava aos poucos e quando imaginou dar o seu derradeiro suspiro, ouviu a melodia do turno anterior. A canção que exaltava a lua saturava o ambiente de beleza enquanto dissipava a névoa maliciosa. O calor voltou ao seu corpo quando a melodia preencheu seu coração. Ficou estendida no chão tentando compreender o que acontecera até as luzes voltarem ao normal.
Levantou-se como se houvesse despertado após o uso de um sedativo e abriu com cautela a porta do privativo. O banheiro parecia intacto, exceto pela canção ainda audível. A jovem suspirou e pé ante pé deixou a cena de sua fantasmagórica experiência para trás. Poucos metros a sua frente, flutuando rumo às escadas, estava o ser espectral do andar desativado. A música preenchia o corredor e a enfermeira sentiu uma angústia aterradora. Sem pensar direito berrou o nome de Sofia e o espectro virou-se para ela. A criatura tinha um corpo etéreo, quase transparente. Contudo, possuía lábios de um vermelho singular e olhos tão escuros e profundos quanto um par de buracos negros. Flutuou para perto da enfermeira que estendia a mão na tentativa de tocá-la. Encararam-se por breves segundos e a criatura sorriu ao ser chamada de Sofia mais uma vez, desfazendo-se em uma neblina fria logo em seguida. A enfermeira atônita esforçou-se para voltar a sala de descanso. Abismada, deu-se conta que seu turno estava quase no fim. Como assim, ela fora ao banheiro antes das duas da manhã!
Em casa, repassou mentalmente os eventos da madrugada. Não encontrou nenhuma explicação aceitável. Por sorte era domingo e ela poderia descansar o suficiente para colocar sentimentos e pensamentos em ordem. Deitou-se em sua cama macia após um banho relaxante e logo adormeceu. Despertou no horário costumeiro dos dias de trabalho. Preparou uma refeição e foi para sala comer vendo televisão. Assistiu um filme romântico repetido e lembrou de Sofia. Curiosa, pensou no diário e foi procurá-lo. Estava em seu quarto em cima da escrivaninha cuidadosamente aberto na página com a descrição de Sofia. A jovem enfermeira não continha mais seu desejo de ler o diário. Poderia descobrir o que acontecera com sua amiga? Será que era mesmo a Sofia? E o fantasma, quem seria? Mal pousara os olhos nas páginas amareladas do diário sentiu um torpor e novamente consumiu e foi consumida por cada palavra lida. A luz do luar iluminava a lânguida criatura absorta em sua leitura.
E este foi outro Conte seu conto com a participação de Mei Lin Mei. Agradecemos aos nossos queridos ouvintes e até nosso próximo encontro em Eu não tinha o que fazer e fui escrever