Blog :: Rádio Café - Hipocondrias

Rádio Café – Hipocondrias

Por Mônica França - 10 de Agosto de 2020

Imagine-se como um cliente regular de uma cafeteria cujo principal atrativo para você seja um programa de rádio tocado exclusivamente naquele lugar. Faça o seu pedido e aprecie um conto com café.


Estamos ao vivo com mais um Conte seu conto no programa Eu não tinha o que fazer e fui escrever.

Lembrando que temos três categorias de selos temáticos, Madness, Memories e Erotics e hoje o selo temático é Madness da ouvinte Mei Lin. É mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever oferecendo conteúdo adulto ficcional somente para os mais corajosos.
Agora, queridos ouvintes, teremos a leitura de Hipocondrias por Mei Lin em Conte seu conto. Sirva-se com uma bebida e aprecie a loucura!

Já não sabia mais o que fazer naquela manhã. Levantara-se às quatro horas, coara um café e bebera amargo. Faxinou a casa como fizera no dia anterior e no outro antes deste. Não saía mais de casa, pois não queria se expor ao germe da vida e aos germes da humanidade. Havia tempo comprava tudo pela internet e ia ao banco somente quando necessário – bendito cartão de crédito e abençoadas fintechs. Quase dez horas e aproveitava para tomar água com limão para se desintoxicar por dentro, afinal, só a casa limpa não bastava.
Foi conferir a despensa de limpeza para sondar o seu estoque de produtos sanitários: cinco caixas de sabão em pó de um quilo, dez pacotes de sabão em barras, cinco fardos de detergente, dez litros de água sanitária, cinco litros de creolina, vinte litros de vinagre de maçã (o melhor que há – pensou sorrindo), álcool em gel… hã… sem álcool em gel. Como assim? Metodicamente retirou cada produto da despensa, limpando-os cuidadosamente com um pano embebido em vinagre e constatou não ter nenhum frasco de álcool em gel. O que fazer? Caso precisasse ir ao banco ou ao médico, como faria sem o álcool?
Fitou as mãos e imaginou-as tocando em lugares e maçanetas desconhecidas, um enjoo fez seu estômago contorcer em um espasmo de nojo. Germes e mais germes se apossaram de seus pensamentos por causa de suas mãos imundas. Uma crise de espirro lembrou prováveis patógenos belicosos e em menos de um minuto toda a despensa cheirava à água sanitária sufocando até baratas inexistentes. Inalou profundamente o ar poluído por cloro e logo começou a tossir. Ao levar a mão à testa concluiu estar febril e decidiu ir ao médico. Como sairia se não tinha álcool em gel? Lançou um olhar desesperado para a despensa limpa, organizada e desinfetada, porém órfã de álcool. Precioso e insubstituível álcool em gel.
Agora tinha ânsias, mas o que faria sem o álcool? Disparou derradeiro e desamparado olhar para a despensa e foi para a cozinha. Tudo estava perfeitamente limpo e aconchegante. A pia seca e sem louça, o fogão reluzente e com um vaso de violeta repousando em sua tampa de vidro, mesa e cadeiras alinhadas e nem mesmo uma migalha de pão podia ser encontrada em qualquer lugar que não o lixo. Suspirou e sorriu demoradamente ao se deleitar na limpeza de seu lar. Seu momento mindfulness foi interrompido pelo barulho de asas irritantes e repugnantes. Procurou identificar o som daquele ser desprezível para expulsá-lo da sanidade de seu lar. Encontrou o inseto vil pousado na alvura da parede da cozinha, uma mancha preta maculando a santidade da cozinha.
Aquilo não passava de uma mosca e ela seria eliminada como tal. Onde guardara o inseticida? Forçando a memória, deu-se conta que há meses não comprava mais inseticida, pois havia dedetizado a casa. Com os olhos fitos no inseto imaginou alguma maneira de se livrar daquela criatura. Não podia aceitar, não queria aceitar aquela nódoa em sua vida. Concluiu que teria de se livrar dela com métodos de agressão física. Cuidadosamente segurou um de seus chinelos na mão e silenciosamente aproximou-se da parede onde a mosca se limpava. O que esse bicho pensa que está fazendo? Observou seu alvo atentamente. As asas estavam paradas e lembravam frágeis triângulos sobrepostos em seu abdome. Algumas listras marcavam o minúsculo corpo preto composto por seis patas finas, articuladas e delicadas. Com as duas patas da frente limpava freneticamente os olhos compostos enormes, a mandíbula e a língua como em um ritual vital.
Enfim, era preciso cautela, muita cautela. Aqueles olhos eram poderosos demais para serem ignorados e o seu ritual hipnotizante era estranhamente fascinante. Respirou profundamente para preparar seu ataque ao ser alado. Ergueu a mão que segurava o chinelo até a altura da mosca e pensou se deveria dar um golpe rápido ou lento. O que levaria ao resultado desejado? Mirou sua presa e deu um golpe forte e vigoroso na parede branca. Hesitou antes de checar se a mosca havia morrido ou escapado, afinal, elas costumam ser especialistas em fuga. Soltou um muxoxo e conferiu o resultado de sua ação. Para sua surpresa o ataque surtira efeito, mas antes de comemorar esplêndida vitória, deu-se por si ao observar a mancha dos restos mortais da criatura voadora. O estômago enjoado se manifestou novamente e um líquido azedo alcançou sua língua. “Tenho que limpar essa parede!”, afirmou decididamente. Foi até a despensa e voltou com creolina, balde, esponja e sabão. Ia lavar a parede, melhor, lavaria a cozinha inteira, pois haveria de ter germes para todos os lados. Contudo, aquela nódoa seria a primeira a partir. Com a esponja repleta de sabão começou a esfregar a parede.
Enquanto esfregava, pensava na mosca e em seus olhos hipnotizantes. A mancha até que lembrava a mosca, mas não agora. Agora era esfregada e ia desaparecendo como a vida que a habitava. Colocou mais sabão na esponja e esfregou com renovada força e entusiasmo a mancha reminiscente da mosca. E novamente pensava nos olhos da mosca… sacudiu a cabeça para espantar tal pensamento e verificou se a parede estava limpa. Supreendentemente notou um fio vermelho vivo no meio de uma esfera escura e disforme. Apertou os olhos na tentativa de focalizar melhor o que via e quiçá determinar com mais clareza o que era. De onde saíra aquele fio vermelho? Será que me machuquei ao limpar a parede? Em sua mão notou um pequeno corte, quase insignificante. Será… mirou a parede mais uma vez e a disforme mancha ganhara traços de inseto. Tomava forma o que não mais vivia. Seus olhos arregalados e incrédulos refletiam a formação de grandes olhos compostos e vermelhos advindos do fio anterior. Em questão de segundos um corpo escuro e listrado foi delineado na brancura da parede como se alguma mão invisível o desenhasse.
Com a respiração ofegante, o coração descompassado e os olhos vidrados em profundo e genuíno horror, afastou-se da parede insólita. Não podia crer naquilo, a mancha transmutava-se em mosca. Uma mosca terrível, de olhos vermelhos espreitando ao redor e um corpo preto e imundo a profanar a alvura da parede. O estômago estava prestes a expelir o azedume de todo estresse quando a criatura aumentou seu tamanho. Tinha dois centímetros e num piscar de olhos mais dois. Um misto de pavor, horror, terror e nojo fizeram o estômago se contrair em dores lancinantes. Ao se afastar, sem tirar os olhos da entidade aterradora, tropeçou no balde e derramou a água suja no porcelanato branco neve. A mosca estava com o tamanho de uma criança de dez anos e seus olhos eram gigantescos. Lentamente a criatura soltou uma pata da parede, depois outra e mais outra até restar somente as asas grudadas na parede. O som de um corpo batendo no chão ecoou pelo ambiente. Um líquido vermelho tingia a água insalubre empoçada no piso irregular. Em um esforço hercúleo, virou a cabeça para o lado e soltou um gemido desapontado. Embaixo da pia da cozinha havia uma caixa organizadora repleta de álcool em gel. Um riso histérico inundou a cozinha seguido de um vômito acre. Olhou para cima e viu um inseto enorme e abjeto caminhando pelo teto. A mosca começou a limpar os olhos, a mandíbula e a língua absorta em seu ritual vital. O corpo caído no chão da cozinha ensanguentada e vomitada convulsionava. Álcool em gel, preciso de álcool em gel, agonizava em horror.

Ok, queridos ouvintes, este foi mais um conto em seu programa favorito Eu não tinha o que fazer e fui escrever. Agradecemos a nossa ouvinte, Mei Lin, por nos enlouquecer um pouco com seu texto em Conte seu conto. Até nosso próximo encontro, queridos ouvintes.

contato@morot.com.br