Blog :: Rádio Café - Infiltração

Rádio Café – Infiltração

Por Mônica França - 12 de Agosto de 2020

Você voltou ao nosso café. Sinta-se à vontade, faça seu pedido e aprecie mais um conto tão inadequado quanto a vida.


Olá, queridos ouvintes, estamos novamente juntos com mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever com o quadro Conte seu conto e os selos Madness, Memories e Erotics.
Hoje temos a participação da ouvinte Lin Mei com o conto Infiltração pelo selo Madness. E agora com vocês Conte seu conto.

O dia cinzento combinava com o estado de espírito de P181.

Desde que fora abordada por P171 no hall de entrada do prédio, nunca mais fora a mesma. Estava insone e psicologicamente exausta por suprimir a raiva que sentia por P171.

Eu não a culpo pela raiva que sente, ela sim. P181 não lida objetivamente com suas emoções, mas, no fim das contas, quem de nós pode ser tão objetivo?

Em uma manhã outonal, P181 foi questionada por P171, que a olhava de cima, sem a menor intenção de ouvir as respostas às suas perguntas. A altura de P171 favorece sua postura cheia de si. Aliás, tão cheia de si, que usava abusivamente os imperativos verbais!

Bom, eu deveria ser um narrador isento, um mero observador dos fatos. Contudo, tenho minhas predileções e alguns humanos são mais interessantes que outros. São tão interessantes ao ponto de eu me confundir com eles.

Voltemos ao encontro das duas vizinhas.

Naquele dia, P171 deu um ultimato a P181 e isso foi o início do declínio da sanidade mental de P181. Ela deixou o prédio com vontade de falar palavrões, agarrar o pescoço de P171, bater a porta do condomínio… o que ela fez. Ela só não poderia prever que ao concordar com o prazo estipulado por P171 assinara um atestado de morte.

Acompanho P181 há algum tempo e confesso ter me afeiçoado a ela. Uma criatura intrigante, de horizontalidades, de verticalidades e de conflitos. Ainda pouco se recuperou de uma depressão desenvolvida durante o mestrado e essa abordagem da vizinha lhe trouxe de volta a pressão emocional que não sentia há meses.

As emoções dela vagabundeavam entre vingança, raiva, indiferença e aceitação. Ela começou a se odiar e a odiar sua vizinha com a intensidade de uma obsessão.
Enfim, aquele dia cinzento foi o prenúncio da madrugada escarlate que o seguiria.

P181 foi se deitar cedo, pois nada a alegrava ultimamente. Seu maior desejo era dormir e nunca mais acordar (um desejo bem comum entre os humanos).

Eram duas da manhã quando o sono fugiu. Inutilmente ela se debateu de um lado para o outro na cama. Um redemoinho de emoções turbulentas assaltavam seu coração, seus pensamentos mórbidos estavam mais intensos do que nunca.

Tateou na escuridão a gaveta da cômoda, levou a pistola até seu crânio. Lágrimas escaldantes escorriam de seus olhos, sua garganta doía, sua mão tremia. Com uma voz gutural sentenciou que não iria para o inferno sozinha.

Caminhou silenciosamente a escuridão até a unidade 171. A marca certeira de um pé abriu a porta cujo gemido rangente ecoou pelo corredor escuro.

Em poucos segundos, P181 encontrou o quarto de seus vizinhos. Estavam com um celular prestes a estragar a festa.

Ela pulou ferozmente sobre eles e sequestrou o celular. Apontou a pistola para o homem e exigiu silêncio. Uma mancha líquida brotou no edredon, o que rendeu uma gargalhada perturbada de P181.

Com a arma engatilhada, ela acariciava a vizinha e murmurava:

Os olhos de P181 escancaravam sua paranoia, o limiar da sua loucura; os de seus vizinhos, somente terror.

Numa decisão insana o vizinho tentou tirar a arma dela, mas ela era o próprio demônio enlouquecido e frustrou a tentativa dele. O furor de P181 não pode mais ser contido e ela atirou no homem.

Logo se deu conta que aquele ato acordaria o prédio. Ela não poderia mais torturar sua vizinha tanto quanto queria. Entretanto, ainda havia tempo para uma pequena satisfação pessoal.

Apontando a arma para a cabeça da mulher, ordenou:

A mulher arregalou os olhos. Ia implorar por misericórdia quando sentiu uma dor aguda na perna. Desviou seu olhar para ver o que havia acontecido. Uma faca jazia em sua carne cercada por um vermelho intenso.

Em estado de choque, a mulher cumpriu a sentença.

P181 lentamente aproximou sua boca da língua da vizinha. Tocou com a ponta dos lábios a língua exposta. A mulher estremeceu.

Sua língua foi lambida, chupada e acariciada de um jeito que ela nunca imaginou ser possível. O êxtase tomou conta de P171 e ela beijou a outra voluptuosamente.
P171 sentia seu corpo aquecer de prazer ainda que a arma continuasse encostada em seu abdômen, ela não podia mais resistir a P181. Puxou-a vagarosamente para mais perto de si, até que uma dor absurda a arrebatou de seu êxtase.

Em cima de seu peito, um pedaço vermelho de sua língua adormecia inerte. Olhou interrogativamente para a outra.

P181 limpou o sangue de sua boca com as costas de sua mão. Cuspiu a saliva ensanguentada no chão e falou ironicamente:

Com um sorriso malicioso acrescentou:

-Não sabia que você iria gostar! Contudo, tenho um objetivo e devo cumpri-lo.

Com a arma apontada entre os olhos da vizinha, ela atirou à queima roupa.

Policiais invadiram o quarto penumbroso.

O cheiro de pólvora denunciava o crime.

Com a pistola na boca, o último tiro da noite foi disparado.

O corpo de P181 despencou sobre o de P171. No fim, o desejo arrebatador de P171 foi atendido… o novo desejo.

E assim os seres humanos agem, matam-se por motivos tão ridículos e banais quanto infiltrações e reformas.

E esse foi mais um conto em seu programa favorito Eu não tinha o que fazer e fui escrever. Agradecemos a nossa ouvinte, Lin Mei, pela participação com seu texto inadequado e impróprio em Conte seu conto. Até nosso próximo encontro, queridos ouvintes.

contato@morot.com.br