Rádio Café – Castelos
Por Mônica França - 27 de Agosto de 2020
Olá, bom te ver aqui novamente. Imagino que seu desejo de subversão tenha te trazido até aqui. Bom, vamos ao que te interessa.
-Olá, que bom que voltou. Hoje vai querer o mesmo de sempre?
-Claro! Irei prepapar seu pedido.
-Aqui está, um expresso, um pão de queijo e um conto na Rádio Café!
Estamos de volta com mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever trazendo para nossos ouvintes o quadro Conte seu conto. Para participar é simples, envie-nos um conto adequado a um de nossos selos temáticos Madness, Memories, Erotics e Horror. Agora teremos o conto Castelos da ouvinte Lin Mei Lin em nosso quadro Conte seu conto pelo selo Madness.
Por uma fresta da janela a luz do sol nascente se derramava displicentemente sobre a mesa. Hãããããã, murmurou… ao esfregar os olhos notou as cartas de seu castelo iluminado suavemente pelo saber da luz matinal. Seus olhos afeitos ao obscuro de sua natureza eremita foram invadidos pela claridade e em um gesto de sobrevivência atirou-se na janela traidora, fechando a um golpe certeiro a veneziana de frio e distante alumínio. Piscou algumas vezes para se acostumar novamente a penumbra. Grunhiu de insatisfação ao notar as cartas depostas na mesa.
“Como assim?!?”, gemeu feito um animal em vias de ser devorado pela escuridão. Não se conformava com o que vira. Centenas de cartas de variados naipes jaziam sobre o marrom indiferente de uma fundação mal elaborada. Como se não bastasse, o líquido tinto da noite anterior tingia em uma grande poça a mesa, as cartas e, não satisfeito, escorrera até o chão. Novo gemido ecoou por uma escuridão inventada quando seus pés iniciaram uma trôpega caminhada até a mesa. Um passo arrastado de cada vez, como se aqueles pés estivessem exaustos de viver… o que é viver mesmo? Um arrasto, outro arrasto e um acumulado de cartas mortas a frente de pés que não mais encontravam forças para transpor qualquer tipo de obstáculo.
Os olhos miravam a mesa, mas a dificuldade além da habitual para caminhar o mesmo caminho de todos os dias fê-los fitarem o chão. A boca suspirou sem nenhum pudor diante do montículo de reis e rainhas empilhados no chão. Outro suspiro serviu de combustível para as mãos recolherem o mosaico de naipes de monarcas e súditos depostos. Ao encarar as cartas mortas do baralho de sua vida, a boca esboçou um sorriso irônico para em seguida gritar para o vazio da escuridão “Muitos monarcas!”. Uma gargalhada esganiçada reverberou rompendo em ondas o silêncio de décadas. Repentinamente, os pés retomam a marcha até a mesa como soldados bem treinados e quase indiferentes ao mundo em derredor. Tempo, tempo, quanto tempo se passara? O que é tempo? A marcha continuava sempre em frente para sempre até algum lugar ou nenhum lugar. Caminhando, arrastando, tropeçando, soluçando, marchando…
A mesa, a poucos passos de distância, era agora a imagem de uma cidade devastada. O castelo que a habitara não passava de ruínas. Cada carta era um sonho e cada sonho se tornara um pesadelo. Penumbra… as mãos começaram a tatear a mesa e os olhos apenas observavam a cena desoladora. Os dedos se embeberam em ácido líquido e tingiram as cartas dedilhadas, deixando marcas indeléveis da tragédia matinal. A boca solta um muxoxo e o corpo cai pesadamente na cadeira dura. Um cheiro etílico invade os pulmões depois de profunda inspiração. O dentro do corpo ardia como se ainda houvesse algo a ser feito, um espasmo de vida percorria o corpo e fazia o coração bater compulsivamente. Pensamentos errantes perturbam o cérebro “O que é isso?”, “É adrenalina?”, “Será que vou morrer?”. Olhos vadiam pela mesa em busca de conforto, contudo, nada encontram.
O corpo se acalma e o nariz respira longamente. O ar embriagado não incomoda mais. As mão repousam em cartas de um castelo sem fundação. O pés descansam em úmida poça sem se incomodarem. Os olhos enxergam outras paisagens, mas nem por isso mais animadoras. O castelo de tantos anos ruíra diante de ínfima luz. Por isso, tudo no corpo sempre se negara à luz, não importando que tipo de luz fosse. A penumbra da casa era seu abrigo mais precioso e foi assim, na escuridão, construída toda sua vida. Seu castelo, seu domínio, sua força e sua fé. Não precisava de mais nada nem de ninguém. Todavia, desmoronava seu reino e diante de tal constatação, com as cartas postas na mesa e a vida como aposta, negou-se a perda derradeira. Um braço em frenesi atravessou a mesa de um golpe e terminou de destruir as cartas sem sentido de um castelo infundado. O nariz ficou ofegante, o coração voltou a bater com força no peito que desejava explodir, as mão se cerraram decididamente, o corpo se empertigou, a cadeira foi deixada de lado assim que os pés iniciaram nova marcha rumo a janela.
Dessa vez os pés não arrastaram o chão, eles o caminharam com altivez. Um corpo decidido e vivaz, pés que sabiam o caminho, respiração compassada por um nariz cheio de brio, braços e mãos unidos em cadência. A janela era o alvo. Sim, aquela que dizimara todo nosso modo de vida, nosso castelo. A excitação do momento fez um fino fio sanguíneo escorrer por uma narina agitada. O ambiente esquentava exponencialmente, enquanto o sangue do nariz coagulava uma gota solitária no chão. Os pés marchavam decididos e em nada lembravam os pés de outrora. A mão direita, agitada e certeira, socou a veneziana uma, duas, três vezes até tingir de vermelho o gélido alumínio. Então foi a vez da mão esquerda e ainda mais sangue respingou pelo ambiente. Os olhos lacrimejavam de alegria e dor, o nariz sangrava grosso e vívido plasma, as mãos doíam em prazer quase masoquista e os pés, os pés estavam no limite. Já não podiam aguentar a si mesmos e ao peso do corpo. A energia e o entusiasmo cederam lugar ao cansaço e o corpo antes empertigado ia se derramando vagarosamente ao chão. O ambiente esfriava vertiginosamente.
Foi um ocaso dominical qualquer. O sol poente era invadido pela lua nascente ou quiçá ela era invadida por Rá em um heliocentrismo peculiar fora do castelo de cartas marcadas e frágeis. Enquanto o manto da noite se aquecia ao luar, a lua cheia rompia a escuridão do castelo. A emboscada do corpo contra a janela fez a veneziana se abrir em desesperada fuga. Coada pelas frestas mal feitas e rugosas, a luz lunar iluminava o corpo, o chão, a mesa e toda a paisagem desolada. O corpo ferido resfolegava com os olhos esbugalhados, talvez estertorasse em seus últimos e convulsivos suspiros. A lua brilhou em vítreos olhos para apagarem-se logo a seguir. Ainda em verdadeira invasão, percorreu o chão em voraz incursão trazendo à luz o sangue e o caos abrandado pela penumbra. O tinto alcóolico tingia mesa e baralhadas cartas descartadas ao lado de uma garrafa estilhaçada. Uma cadeira tombada tão displicentemente quanto uma roupa jogada pela casa ao chegar da rua se rendia a sua sina. A lua se foi e nada mais restou do castelo, do aconchego da escuridão, da angústia da luz e do corpo após iluminada revelação.
E esse foi mais um Conte seu conto em seu programa favorito Eu não tinha o que fazer e fui escrever. Agradecemos a participação de nossa ouvinte e desejamos boas subversões a todos os nossos ouvintes. Até nosso próximo encontro.