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Rádio Café – Tinto

Por Mônica França - 8 de Setembro de 2020

Olá, teve um bom feriado? Agradecemos a sua presença regular em nossa cafeteria. Estamos todos ansiosos pelo conto de hoje.


-Vou fazer uma sugestão. Um grão especial chamado Bourbon Amarelo chegou em nossa cafeteria. É um grão suave e de textura delicada, gostaria de experimentar?

-Certo, irei preparar seu pedido.

-Aqui está, um expresso Bourbon Amarelo e um pão na chapa. Vou ligar o rádio.

Olá, queridos ouvintes. Voltamos com mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever e o quadro preferido de vocês Conte seu conto. Vocês podem participar enviando seus textos de acordo com nossos selos temáticos Madness , Memories, Erotics e Horror. Hoje teremos a participação de Mei Lin Mei – começo a pensar que só temos um ouvinte – e seu conto Tinto pelo selo Horror em mais uma edição de Conte seu conto.

Poderia descobrir o que acontecera com sua amiga? Será que era mesmo a Sofia? E o fantasma, quem seria? Mal pousara os olhos nas páginas amareladas do diário sentiu um torpor e novamente consumiu e foi consumida por cada palavra lida. A luz do luar iluminava a lânguida criatura absorta em sua leitura. Tomada por uma sensação de lassidão sentia somente o poder das palavras que a seduziam e aterrorizavam ao mesmo tempo. Embora seu corpo fatigado desejasse o carinho dos lençóis, seus olhos devoraram com gula as palavras lidas. A descrição da paciente cuja pele clara contrastava com os cabelos castanhos escuros e olhos profundamente negros e melancólicos evocava na jovem enfermeira as lembranças de Sofia. A paciente de aproximadamente dezesseis anos apresentava quadros alucinatórios com delírios persecutórios e lascivos. Mesmo sob efeito de sedativos, costumava relatar abraços noturnos, toques em partes específicas de seu corpo, murmúrios de desejos e afeto por uma voz irreconhecível.

Passados meses nesse quadro, a jovem foi levada para o andar desativado e amarrada em sua cama. A equipe iria aplicar um tratamento inovador cujos efeitos ainda eram desconhecidos. Durante duas semanas a prepararam para a intervenção de sangria que seria realizada conforme procedimento já conhecido. Contudo, a inovação do tratamento seria fazê-la beber o próprio sangue. Passava os dias restrita ao leito com suas mãos e pés amarrados. As amarras de couro velho estavam tingidas de vermelho e seus pulsos e tornozelos feridos inflamados. Sem medicação para suportar qualquer dor ou sofrimento psíquico, a paciente permanecia apática. Seu corpo frágil mostrava cada vez mais as consequências do flagelo que sofria. Fora abandonada por sua família e o hospital fazia o que queria com ela. Finalmente, o dia da sangria chegara. Ela estava muito fraca e um dos enfermeiros sugeriu o adiamento da sangria, mas o médico responsável o expulsou do andar e a jovem foi submetida ao procedimento.

O sangue retirado aos poucos foi adicionado de uma solução salina com algumas vitaminas. A paciente não apresentava qualquer reação e mesmo seus sinais vitais eram inacessíveis. O médico, meio atormentado por seu complexo de deus, enfiou uma sonda nasogástrica de qualquer jeito na jovem agonizante e a alimentou com o próprio sangue aditivado. O corpo debilitado convulsionou debatendo-se ferozmente pela vida, quiçá pela morte. A atmosfera do andar esfriara e uma luta sobrenatural se iniciara no corpo pálido e fraco da jovem moribunda. Um enfermeiro que acompanhara o médico correra assustado, o médico preferiu observar seu feito. Vinte minutos após o início das convulsões, o corpo ficou inerte, o ar voltou a esquentar e o médico se aproximou com seu estetoscópio. Tentou auscultar o coração, nada; medir a pulsação, nada; arrumou máquinas e medidores para ler sinais vitais, nada. O homem deixou-se cair ao lado da cama e parecia inconsolável. Sem aviso algum, o ar esfriou novamente e uma melodia começou a ser entoada de maneira quase imperceptível. O homem percebeu a sutil melodia e imaginou se seu experimento tivera êxito. Levantou-se e de maneira altiva tomou seu estetoscópio na tentativa de auscultar a paciente. Mal se aproximara da jovem sentiu uma mordida em seu braço cujo filete de sangue era lambido pela pálida criatura na qual a existência já não se sabia humana.

O médico sentiu um misto de temor e repulsa pela sua criação cuja aparência etérea o inebriava. Um sorriso enigmático enfeitava o rosto da paciente banhada pela luz do luar. O homem embriagado pelo inexplicável que presenciava, moveu-se para perto da jovem e tirou suas amarras. Ela permaneceu inerte até o momento em que o repugnante doutor se deitou em cima dela. As lembranças dos abraços noturnos, dos toques não permitidos, da voz irreconhecível a possuíram e em um impulso de defesa e desejo fincou os dentes no pescoço do médico arrancando-lhe um pedaço da carne quente e macia. A criatura se sentiu energizada e antes que o homem pudesse se defender mordeu mais um pedaço de seu corpo suculento com sangue fresco. Lambendo as feridas feitas em seu criador fez-se mais forte e determinada. Satisfeita, contemplou a lua cheia e voltou a entoar a melodia de antes. Era uma canção de quando tinha uma amiga, sua única e amada amiga de infância. Duas gotas vermelhas tingiram o chão frio e cinza do andar. Passos invadiram a melodia descompassando o ritmo sombrio da canção. A criatura etérea desfez-se no ar enquanto um segurança qualquer chamava por ajuda no rádio portátil. O andar foi desativado alguns dias depois e desde então rumores de canções e sons aleatórios foram relatados ao longo dos anos.

Um calafrio fez a enfermeira sussurrar o nome de Sofia. Ofegava bastante depois da leitura e não tinha certeza sobre o significado daquilo. Fechou o diário, passava da meia-noite e a lua resplandecia magnífica. Sentiu sede, uma sede de algo vermelho. Tinha um gosto tinto na língua como um vinho especial. Foi para cozinha, procurou um suco de uva, mas tinha somente alguns tomates. Preparou um suco e bebeu com gula, lambendo o sumo vermelho de seus lábios com avidez. Embotada por seus pensamentos, questionamentos e desejo foi para o quarto. Antes de fechar a cortina observou a lua cheia. Murmurou alguns trechos da canção aprendida com Sofia e foi para a cama. Naquela madrugada teve um sonho vívido de sua época de púbere. Conversava animadamente com Sofia depois de muitos meses de tristeza e solidão. Sua amiga a apoiara durante o difícil processo de adaptação ao divórcio de seus pais. Durante aquela conversa, Sofia propôs que as duas fizessem um pacto. A garota de doze anos ficou reticente com a proposta da amiga. Não era a ideia do pacto de amizade que a incomodava, mas o fato de Sofia insistir em um pacto de sangue. Sofia insistiu por dias até a amiga aceitar fazer o pacto. Assim, no sétimo dia de lua cheia do sétimo mês, um pacto de sangue entre duas amigas foi realizado. No ritual, as duas cortaram os dedos indicadores das mãos esquerdas e direitas de cada uma e juntaram seus dedos com os da outra formando um “v” e trocando sangue e lealdade até o fim da vida.

Olhando para o teto escuro e respirando com dificuldade, a enfermeira acordara com uma sensação febril. Ficou relembrando seu pacto com Sofia enquanto lágrimas teimosas molhavam seus rosto. Ansiosa e melancólica, ficou na cama em posição fetal por alguns minutos. Lembrou que era segunda-feira e teria trabalho. Deixou a cama com dificuldade e foi para o banheiro. Olhou no espelho e se achou mais pálida que o normal. Suspirou e tomou um banho demorado. Sentindo-se melhor, comeu um sanduíche e se arrumou para o trabalho. Os horrores praticados no andar desativado povoaram sua mente mais uma vez. Sentiu uma pontada em seus dedos indicadores e ao examiná-los notou um pequeno corte na ponta de cada um por onde saía uma gota de sangue. Sacudiu a cabeça antes de entrar em pânico, mesmo com o coração disparado no peito e uma angústia opressora pesando sobre o corpo, limpou os dedos e foi para o hospital.

E este foi mais um Conte seu conto com a participação de Mei Lin Mei. E para você, querido ouvinte, que sentiu um toque de erotismo, você está certo! Enfim, até nosso próximo encontro em Eu não tinha o que fazer e fui escrever.

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