Rádio Café – Reencontro Rubro
Por Mônica França - 16 de Setembro de 2020
Olá, tudo bem? Há quanto tempo você não nos visitava. Hoje teremos café e conto.
-Qual será o pedido de hoje?
-Um expresso e um pão de queijo? Claro, só um momento.
-Aqui está seu pedido. Bom apetite. Irei ligar o rádio.
Estamos ao vivo com mais um programa Eu não tinha o que fazer e fui escrever com o quadro especial Conte seu conto. Nossos ouvintes podem participar enviando em nosso e-mail um arquivo .pdf com seu conto de acordo com uma temática de nossos selos Madness, Memories, Erotics ou Horror. Em Conte seu conto de hoje, teremos a participação da ouvinte Mei Lin Mei – cá entre nós, parece que ninguém mais ouve este programa – com o conto Reencontro rubro pelo selo Madness.
Sentiu uma pontada em seus dedos indicadores e ao examiná-los notou um pequeno corte na ponta de cada um por onde saía uma gota de sangue. Sacudiu a cabeça antes de entrar em pânico, mesmo com o coração disparado no peito e uma angústia opressora pesando sobre o corpo, limpou os dedos e foi para o hospital. Chegou no hospital e hesitou antes de subir para a UTI. Soube que havia uma paciente em coma e ela seria a enfermeira responsável. Sua colega de turno fazia um café na copa, a jovem a cumprimentou e foi guardar suas coisas na sala de descanso. Notou a aguda escuridão noturna e sentiu um aperto no peito seguido de palpitações agitadas e sorrateiras. Respirou algumas vezes com a intenção de se acalmar e lidar mais efetivamente com os sintomas da adrenalina circulante em seu corpo. Foi para a cozinha conversar com sua colega aproveitando para beber água. Elas combinaram algumas questões de trabalho e, logo em seguida, a jovem foi averiguar a paciente em coma.
O som das máquinas de suporte quebrava o silêncio entorpecente do quarto. No leito, havia uma garota de dezesseis anos muito branca com longo cabelo castanho escuro liso. A enfermeira verificou as máquinas e o soro cujo ponto de acesso no braço da garota formara uma mancha roxa. Ela observou a paciente mais demoradamente, atentando para a alvura da pele em contraste com o cabelo escuro. O rosto dela não tinha expressão alguma e seu cabelo esparramado displicentemente no travesseiro e se esgueirando para baixo dos ombros tinha um brilho incomum. Ela sentiu um suave aroma floral e imaginou ser da garota, talvez um xampu ou uma colônia. A jovem enfermeira debruçou-se sobre a paciente para ajeitar o travesseiro e deixá-la mais confortável. Sem perceber, começou a pentear com os dedos o cabelo macio e delicado da garota. O aroma de flores tornou-se mais intenso enquanto as mãos da enfermeira dedilhavam devotamente o cabelo sedoso. Ela é interrompida por sua colega de turno cuja presença no quarto a assustara. Antes de sair, lançou um último olhar para a lânguida mocinha e jurou ter visto o esboço de um sorriso.
A noite transcorreu calmamente até às duas da manhã, quando um acidente colocou quase todos os plantonistas na emergência. A jovem enfermeira ficou sozinha no andar para acompanhar a jovem em coma. Preparou um chá verde e após bebê-lo foi fazer nova checagem na paciente. Seguiu o protocolo meticulosamente, exceto pela vontade que sentia de tocar os cabelos de sua paciente. Sacudiu a cabeça para afastar tais pensamentos e foi para a sala de descanso. Ressonava no sofá ao ser subitamente despertada por um gemido agudo. Imaginou ser a garota e correu em direção ao quarto. A mocinha parecia uma boneca de cera inerte. A enfermeira não encontrou nada de incomum e deduziu que o gemido poderia ter vindo de outro lugar ou fora apenas sua imaginação. Já que estava no quarto, decidiu fazer uma nova checagem das máquinas e na paciente. Novamente debruçou-se para ajeitar o travesseiro e o corpo da garota sendo embriagada pelo aroma de flores. Sem resistir, afundou seu rosto no cabelo da paciente. A atmosfera do quarto ficava mais fria à medida que a enfermeira era consumida pelo perfume da garota.
Com seus sentidos embotados, a jovem enfermeira não tinha condições de resistir à tentação de seu desejo. Sem pensar com clareza, entrava em contato com algo mais visceral de si mesma. Em uma tentativa desesperada de se livrar daquela situação, afastou-se da garota e atônita a vira sorrindo. Seus olhos permaneciam fechados, mas seus lábios esboçavam um sorriso enigmático e tão vermelho quanto morangos maduros. A enfermeira deu alguns passos para trás até ser barrada pela parede. Sentindo-se encurralada, lembrou-se do que lera no diário e em um ato falho chamou por Sofia. A garota abriu os olhos e a enfermeira foi encarada por duas pérolas negras. A enfermeira soluçava balbuciando que aquela garota não podia ser a Sofia. Deixou-se cair no chão entregando-se ao choro convulsivo mais por angústia e solidão do que por medo. A garota retirou o cateter e caminhou em direção à enfermeira marcando seus passos com sangue. Ajoelhou-se em frente a outra e tomando-a em seus braços cantou uma canção exaltando a beleza da lua. O pranto deprimido foi silenciado pela melodia familiar e melancólica. O ar parecia ainda mais frio, contudo, a enfermeira sentia-se estranhamente aquecida por aquele abraço. Enfim, entregou-se totalmente àquela garota tomando-a em seus braços.
As duas permaneceram abraçadas consumindo-se mutuamente até se saciarem. Hesitante, a enfermeira afastou a garota e ao contemplá-la reconheceu a Sofia de sua infância e adolescência. A paciente caminhou até a cama, recolocou o cateter e deitou-se. A jovem enfermeira observou a outra à distância permanecendo em um estado de torpor até sentir como se duas agulhas fossem fincadas em seu pescoço. Instintivamente levou a mão direita ao pescoço e pôde sentir sua própria pulsação alterada. Sacudiu a cabeça para sair daquela ilusão, pois começava a crer que tivera um sonho. Ao colocar-se em pé, notou duas gotas de sangue perto dela. Caminhou o chão com o olhar até a cama da garota, enquanto apreciava a rubra mácula tingindo a alvura pura do piso. Sua mente misturava fragmentos do diário com lembranças de sua vida. Murmurava o nome de Sofia de maneira delirante ao andar rumo à cama. Sem nenhum pudor, estendeu as mãos e tocou o cabelo da garota; primeiro de um modo doce e gentil, depois com firmeza e velocidade em um vai e vem dinâmico e vívido dos dedos. Subia e descia os dedos inseguros pelo cabelo delicado da paciente, eles se enroscavam entre si e nas mechas castanhas luminosas dando forma a uma trança. Suas memórias entrelaçadas com o presente e o passado…
De repente, a garota se sentou na cama olhando fixamente para a jovem enfermeira. Na pele alva se destacavam um par de olhos muito negros e lábios vermelhos intensos. A enfermeira não pode mais reprimir a pergunta que a atormentava e encarando a outra questionou-a sobre sua identidade. Sem esperar pela resposta, começou a divagar sobre seu passado com a amiga, os acontecimentos sobrenaturais e o diário. A garota a ouvia com avidez e correspondia ao delírio inflamado da enfermeira. Ambas cruzaram seus olhares em um momento de silêncio. Encararam-se à exaustão e, por fim, abraçaram-se novamente. Uma lua vermelha iluminou a escuridão da madrugada até as primeiras horas da manhã. Ao retornar dos atendimentos de emergência, a colega de turno da jovem enfermeira não a procurou. Somente arrumou seus pertences e caminhou para a saída, deixando atrás de si a UTI vazia e as silhuetas de duas figuras femininas de mãos dadas. As duas criaturas subiram as escadas para o andar desativado e vivendo um pacto de amizade além da vida tornaram-se companheiras imortais.
E esse foi mais um Conte seu conto com a participação da nossa ouvinte exclusiva e preferida Mei Lin Mei. Até nosso próximo encontro em mais um Eu não tinha o que fazer e fui escrever.